As cidades tornaram-se mais poderosas do que os Estados em contexto de pandemia, quando resolveram os problemas das populações. Estiveram sempre lá, próximas e atuantes. A conclusão é de Rui Moreira, presidente da Câmara Municipal do Porto, que falou ao DN no MIPIM, a maior feira de imobiliário do mundo, em França. “Durante a pandemia, corremos vários riscos numa área em que normalmente nem somos considerados pelo governo, mas há outras áreas em que é muito pior, porque estamos a ser confrontados com um quadro legal – e a União Europeia é especialista em quadros legais – que os cidadãos não entendem.” Um deles prende-se com “a burocracia. Penso que a burocracia é resultado de um problema, e esse problema é aplicar legislação em excesso, pois cada vez mais temos enquadramentos legais para tudo. O mundo está a mudar a grande velocidade e parece que temos tendência a olhar para estes quadros legais e pensar neles como se fossem cozinha italiana: não há mais nada para servir além de massa”.
O Porto apostou forte no MIPIM com uma exposição de promoção e atração de investimento para a cidade. E, pela primeira vez, os autarcas de Porto e Lisboa uniram-se nessa missão e num debate sobre o papel das cidades no pós-pandemia. Ser uma cidade sustentável e competitiva é um dos objetivos no presente e no futuro. Da gestão de resíduos à da água, dos investimentos imobiliários verdes à mobilidade, são vários os planos do presidente da Câmara Municipal do Porto para os próximos quatros anos, em que cumprirá o seu último mandato. “Precisamos de transportes públicos sustentáveis e é basicamente isso que temos estado a tentar fazer. A boa notícia é que conseguimos, em conjunto com o governo, reequipar a frota. Até agora, o que tínhamos era autocarros movidos a gasóleo e a gás natural, mas estamos a substituí-los por energia elétrica, o que é uma enorme mudança para a cidade. Também queremos alterar a forma como as pessoas utilizam os transportes públicos, e por isso os jovens abaixo dos 18 anos podem utilizá-los de forma gratuita.” Em termos de mobilidade, a aposta estende-se ao metro, que “está a ser modificado, estão a ser construídas duas novas linhas. Ainda bem que não estou a concorrer para a reeleição, porque quando se está numa cidade que tem o metro em obras as pessoas tendem a ficar zangadas com o presidente da câmara”, brinca.
Considera que uma cidade equilibrada só se faz com habitação acessível, por isso também é uma das suas preocupações. “No Porto temos 13,5% da população a viver em casas municipais. Talvez consigamos estender este número aos 15%, mas estas pessoas pagam rendas equivalentes ao que podem suportar com os seus rendimentos.” Também “queremos trabalhar com investidores privados, para lhes concessionar terrenos municipais durante um determinado espaço temporal, para que isso permita reduzir o custo das habitações. Durante as últimas eleições, muitos disseram que se estivessem no meu lugar estas casas já estariam construídas, o que não é possível. O que sabemos, na realidade, é que os custos de construção estão a aumentar, as taxas de juro estão a aumentar e a disponibilidade de terrenos está limitada”. Nos anos mais recentes, em Portugal, “temos estado mais preocupados com as gerações mais novas, porque, efetivamente, os seus rendimentos não cresceram. Estamos a exportar os nossos jovens porque não lhes pagamos o suficiente. Se utilizássemos o dinheiro que o governo pretende colocar na fogueira da habitação acessível para dar descontos fiscais, talvez aí tivéssemos condições suficientes para criar habitação acessível de forma sustentável”.
Após a conversa em debate, houve ainda tempo para a entrevista.
Esta guerra é uma questão completamente imprevisível. Não foi nada que pudesse ser antecipado. A guerra em si é terrível, é uma invasão, uma situação dramática que vai ter impacto humanitário, militar e económico. Aquilo que aconteceu com as bolsas resulta do aumento imprevisto do preço dos combustíveis, e será uma das coisas que vai fazer perigar alguns projetos. O que podemos esperar é que, tal como a pandemia, possa ser uma coisa que se prolongará no tempo. Temos que olhar para isso como um imponderável, e os imponderáveis têm sempre um fator imprevisto.
Não temos nota disso, mas também ainda é cedo. O tempo dos investimentos é um bocadinho diferente do das notícias. Há três semanas percebemos que há uma guerra, mas até que isso vá ao fundo da fileira que temos com os investimentos demorará algum tempo. No entanto, não nego que relativamente a algumas concessões que temos para avançar, e que tentámos durante a pandemia, mas que por essa razão não tiveram sucesso, nomeadamente uma habitação a preço acessível, a situação nos preocupa. Estamos a falar num mais que provável aumento de taxas de juro, inflação, e ninguém sabe neste momento quanto vai custar investir por metro quadrado. Todos estes efeitos de imprevisibilidade levam muitas vezes a que os investidores se retraiam ou que façam alocação mais por dentro dos seus ativos do que investir em habitação. Mas não nos podemos conformar com isso.
Temo que, embora o imobiliário tenha vindo, no último ano, a mostrar uma recuperação saudável, quer no Porto, quer em Lisboa, assim como no país em geral, estes eventos possam ter um efeito, não direi dissuasor, mas que possam vir a dilatar prazos. Até porque neste momento quer os públicos quer os agentes privados têm muita dificuldade em fixar preços de produtos. Isso deve fazer-nos pensar com tempo e perseverança, mas não a desistir dos projetos. Às vezes mais vale adiar e lançar mais tarde. E aqui está uma coisa que a pandemia demonstrou em termos da utilização das cidades. A cidade é um território de comunidade, de convívio, e deve prevalecer uma maior vontade de partilha do espaço público.
Os centros hoje já são muito atraentes. Percebemos que a maré que levou as pessoas para a periferia há 30 anos teve razões várias. Primeiro, a procura de espaço. Cidades como o Porto tinham pouco espaço. Nessa altura nem se falava em encarecimento dos preços. As pessoas saíram com preços baratos. Mas as casas estavam em mau estado, havia falta de casas reabilitadas, o centro da cidade era muito pouco atraente para as crianças e as famílias. Outra questão é a terceirização da periferia. À volta das cidades criaram-se grandes centros comerciais, ou seja, os cidadãos passaram a ter as grandes lojas na periferia. A habitação transformou essa periferia numa zona mais atraente, especialmente para as pessoas que lá trabalham. Às que têm que vir para o centro trabalhar e utilizar meios de mobilidade interessa-lhes hoje, com esta crise, regressar ao centro.
“A habitação transformou a periferia numa zona mais atraente para as pessoas que lá trabalham. Às que têm que vir trabalhar para o centro e utilizar meios de mobilidade interessa-lhes hoje, com esta crise, regressar ao centro.”
Acho que a mobilidade elétrica é, com todo o respeito, um paliativo. Temos é que começar a apostar nos transportes públicos. Aí, sim, a proximidade conta. No Porto podem ser feitas novas linhas de metro, a transformação da frota de autocarros, haver uma dinâmica gasóleo-gás natural que passe para elétrico e hidrogénio, transporte gratuito para as crianças, que isso vai levar a uma mudança de comportamento mas não imediata. Mas este aumento dos combustíveis veio acelerar tudo isto.
Estávamos com uma emergência climática em que as medidas de mitigação afetavam o nosso conforto, mas agora temos a necessidade da bolsa. De certa forma, acredito que vai haver mais gente a utilizar o transporte público, já não por uma questão de poupar o planeta, mas sim a bolsa.
Em condições normais, para financiarmos aquilo que são as alterações que precisamos de fazer a nível nacional e das cidades, vamos precisar de financiar isto e de ter receita. Esta receita tem de ser através de taxas de carbono, não há dúvida nenhuma. Acho perfeitamente razoável que haja impostos sobre os combustíveis. O que me parece é que se hoje estamos a assistir a uma situação de pico que já não resulta daquilo que é o mercado tradicional dos combustíveis, mas de uma situação de guerra, estamos a falar, digamos, de racionamento de guerra, e é razoável que o governo abdique dessa receita fiscal na medida do possível. E acho que é o que está a tentar fazer. Já ouvi vários argumentos sobre a questão do IVA, mas não tenho a certeza se dizem a verdade, o que parece é que não podemos ter uma taxa de IVA reduzida para os combustíveis fósseis. Se assim é, aquilo que o governo faz é o que pode fazer.
Onde é que isto me preocupa? Não é na mobilidade. Preocupa-me no transporte de mercadorias. Portugal, sendo excêntrico relativamente aos pontos de consumo, nomeadamente têxteis, vestuário ou calçado, é muito dependente da rodovia, e, portanto, este aumento afeta muito o tecido empresarial. E depois há também aquilo que resulta da necessidade energética das nossas empresas. A transição energética nas empresas tem sido muito lenta, e aí, sim, por culpa do governo. Não houve verdadeiros incentivos, antes pelo contrário, houve desincentivos à transição para a produção energética autónoma. A questão das comunidades energéticas só agora está regulada; demorou muito tempo. O Ministério do Ambiente despendeu muito tempo a regular as comunidades energéticas. Se assim não fosse, se calhar hoje tínhamos cinco vezes mais dessas comunidades. Hoje temos uma dependência dos combustíveis fósseis à volta de 40%. Isto parecia bem há sete, oito ou dez anos. Nessa altura estávamos bem. Mas atrasámo-nos, perdemos velocidade. Acho que aqui as cidades têm de fazer o seu papel, só que não têm fontes de financiamento para isto. Porquê? Porque os fundos ambientais em Portugal não são descentralizados e não vemos esse incentivo.
Nós demos os primeiros passos há dois anos, quando começámos a transformação da nossa empresa de águas numa empresa de águas e energia do Porto. Na altura houve quem achasse que era uma loucura desnecessária, mas hoje temos um programa de produção de energia nos telhados dos edifícios municipais. No entanto, temos de ir muito mais além. Mas isto só pode ser feito com o contributo e a mobilização da população e com medidas que acelerem a amortização desse investimento. Para substituirmos o nosso contador da eletricidade ou gás por painéis de energia solar não basta dizerem-nos que a amortização é feita em quatro anos. É necessário haver modelos de aconselhamento, e a câmara está a trabalhar nisso, mas depois também é preciso haver incentivos que permitam à população ser ressarcida do endividamento que contrai com esse investimento.
Espero que sim, acho que sim. Agora não têm desculpa se nada fizerem.
Fonte: dn.pt
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